Ler um bom livro é viajar longe. Voares altíssimos. Pra
dentro, pros sertões nossos. Vivência tanto profunda quanto solitária. Um bom
livro transforma. E transformação é troço solitário. E um bom livro é também muito
perigoso assim como "Viver é muito perigoso", diz Guimarães-Riobaldo, em Grande Sertão Veredas. Viver à dois, perigo dobrado. Leitura à dois, vôo às escuras.
Minh'alma é tímida. Levei anos pra perceber e respeitar isso
em mim. Tem coisa que só sai íntegra, vinda das profundezas mesmo, quando
tô só, completamente só. Embora tenha tentado com afinco fazer isso em cena,
acho que consegui poucas vezes. Cantar profundamente, com emoção, por exemplo, é solitário pra mim. O Outro me esvazia da inteireza que só a solitude me dá.
E da voz que só é aquela na solitude. Ler livro é emoção solitária também. Achava.
Sobretudo ler em voz alta. Ler mesmo, de verdade, deixando-me levar pelas
palavras e movimentos do texto, sendo arrastada pelas emoções contidas ali, e, em
mim... É viajar pra muito longe. É escancarar-se demais.
Tem uma eu que só eu vi, verei e vejo, que só aparece comigo, pra mim. Uma
eu só minha. E isso é parte do mistério de tudo.
Mas... Desachei. Que ler livro é coisa solitária. Ler
um bom livro à dois, mantendo a profundidade da solidão é puro mistério. Fundamenta a relação numa
outra dimensão. Chora-se. Ri-se. Sofre-se, dos profundos. Leva tempo e pede
entrega e confiança. Muda tudo. Almas nuas frente a frente.
Ler na presença dele. Ler com ele. Ler para ele. Ao vivo ou
por telefone, ritual novo, abençoado, sagrado. Ler esquecida da presença dele,
e, de repente, lembrada, vergonha funda. Que ameniza mas nunca passa. Parte do mistério de tudo.
Ao início. Lemos "Os trabalhadores do mar" e seu autor
preferido. Me apaixonei perdidamente por Gilliard, instinto e força em sua pureza brutal. Me vi, o vi, seu autor preferido conta dele pra mim. Me
aproxima do inexplicável, terrível, maravilhoso e único desse que amo. O mais
sólido em ímpeto, constância, altivez, entrega e amor. Depois, "Os Miseráveis", o século 19 e suas
estruturas, o miudinho do humano visto por um olhar social, antropológico,
poético.
E então, "Grande sertão: veredas", lido e relido por
ele inúmeras vezes. Eu, em primeira vez, me vendo Riobaldo, Diadorim, sendo
sertão... Vou me identificando, me vendo no outro ali, e de repente o jogo vira
e Riobaldo me escapa. E nasce "o meu Riobaldo", "a minha
Diadorim", criados da mistura das projeções minhas com as invencionices de
Guimarães. Reflito sobre ética, constância, caráter, amor, entrega,
coragem, medo, fidelidade, liberdade... E vejo ali o mais integralmente amado dos homens que tive. Ele me motiva, me orgulha, me ensina, me cresce e me expande de mim mesma. É bem isso o amor, na essência. Não
o sabia, no antes. Agora sei, Ser Tão a gente, e ainda assim eu mesma.
“Um
homem precisa viajar. Por sua conta, não por meio de histórias, imagens, livros
ou TV.
Precisa viajar por si, com seus olhos e pés, para entender o que é seu.
Para um dia plantar
as suas próprias árvores e dar-lhes valor. Conhecer o frio para desfrutar o calor. E
as suas próprias árvores e dar-lhes valor. Conhecer o frio para desfrutar o calor. E
o oposto. Sentir a distância e o desabrigo para estar
bem sob o próprio teto.
Um homem precisa viajar para lugares que não conhece
para quebrar
essa arrogância que nos faz ver o mundo como o imaginamos, e não
simplesmente como é ou pode ser. Que nos faz professores e doutores do
que não
vimos, quando deveríamos ser alunos, e simplesmente ir ver”
Amyr
Klink
Anasha Gelli