Umbigo de Eros

Te convido para sentar no sofá vermelho de Eros... Vamos escarafunchar os Umbigos!

24.6.05

Da Crisálida

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Ei,vem cá. Vem cá todo mundo!
É chegada a hora de cessar o lamento
De tirar o lenço e balançar ao vento
Acabou o tempo de interpretar!

A lavadeira chorona, a velha das galinhas, a menina moça, a doidinha,
A pobre coitada, a curandeira, a rameira, a rezadeira... Esse povo todo surgiu de trás das cortinas do tempo, de trás dessa pele fina, que recobre nossos seios, nosso ventre, nossa língua... Esse povo que saiu da memória celular, muscular, sei lá. De muito longe, de tão perto, tão incerto. 


Corpo de memórias, de lembranças primitivas
Do início da vida
De antes da mulher que veio do barro
Do tempo da mulher que veio primeiro

Nesse tempo do sonho, onde tudo é possível,
Foi feita uma reunião
Com as mulheres originais:
Nossas ancestrais!

Guardiãs do passado, que se faz presente na gente
Passado que sem o novo vai virar futuro
Porque já se sabe: se o novo é impedido tudo é repetido.
Por isso a reunião!

Saber o que se deve guardar e levar consigo
E o que é velho por demais, carcomido
Separar o joio do trigo
Matar o que deve morrer
Dar a vida ao que vida possui

Foi no tempo do sonho
Que nós, mulheres modernas, de computadores, diplomas,
Carros, freezers e microondas,
Mergulhamos nas nossas crisálidas de tecido
Nas colchas que formam nossas vidas
Costuradas pelas antigas

Cada retalho escolhido, cada fio repartido,
O jeito de distribuir as cores, os amores,
O modo de abrir ou fechar as pernas, de fechar ou abrir o coração,
Tudo isso foi traçado pela mão, pelo pé, pela pele, pelo corpo da mulher.
Nossa maior jóia
Lapidada pelas mulheres mais importantes da nossa história
Nossas mães, avós, bisas, tatás, quintas-vós
E a toda a mulherada,
Obrigada por tudo o que vivemos nessa jornada!

Texto escrito durante o processo de criação do espetáculo "Crisálidas"

Era uma vez
O beijo, o abraço, o carinho, o contato
Da menina
Que ela dava, despejava, distribuía
Entre todos que bem queria

Mas aí um dia... Ih, tem sempre um dia
Acontece alguma coisa que acaba com a folia:
A mania tão bonita da menina
Foi considerada errada, perigosa, proibida!

(Os outros)
“- A menina tá crescendo, já é quase moça feita. Melhor parar agora ou sua vida tá desfeita!”

(Outros outros)
“- Coisa mais fora de hora, constrangedora, ficar distribuindo carinho assim dessa maneira! Pode não! O que que os outros vão pensar dessa esfregação?”

(Menina)
“- Eu nunca vi dessa maneira. É só meu jeito de gostar, de ficar perto das gentes que quero perto a vida inteira!”

(O maior de todos os outros)
“- Besteira , bobage, lesera! Pode não, e tenho dito! Não se pode ser assim com qualquer um. Você há de aprender: Nessa vida tem UM alguém certo que há de ser seu bem querer.”

(suspiro longo da Menina)
“- Um? Mas eu bem quero a tanta gente! Por que só um escolher? Os beijos e abraços saem de mim sem me dizer. Eles é que escolhem seu rumo. Eu só deixo acontecer!”

(O maior de todos os outros)
“- Chega dessa conversa. Não pode mais e pronto!”

De fato, ninguém disse nada.
Mas pensaram.
E pensamento é coisa forte
Faz guerra, cria intriga, confunde e muda vida de menina.
Ela aprendeu a segurar os seus impulsos.
Cada vez que eles vinham ela tratava de engolir. 
Mas, sem conseguir digerir, lhe subiram à cabeça.
E invés de abraço e beijo, ela pôs-se a falar à beça.
E tudo virou blá blá blá.
Falaçâo pra agradar 


Muito tempo se passou.
Ela virou mulher feita, dona da própria vida.
Podia fazer o que quisesse com aquela sua mania bonita.

(longo suspiro da Mulher- menina)
“- Ah! Mas logo agora que o coração subiu pra cabeça e se esqueceu de descer?”
E chorou baixinho um choro antigo pra ninguém ouvir.
De saudade da menina que beijava e abraçava a vida!

Muito tempo depois, num quarto pequeno, sozinha
Bem velhinha, ela fez foi morrer...
Mas antes, um minutinho antes, da Vida lhe escapulir
Ela cerrou os olhinhos, se abraçou apertado e se deu um beijinho!

(Velha-menina)
“- Eu me lembro da menina. Sinto-a dentro de mim. Vou me embora junto dela, eu nela e ela em mim”.

Morreu, com sorriso nos lábios

Á noite, no cemitério onde foi enterrada, ouvem-se gemidos e estalos.
De beijos e abraços.
Dizem que é ela, a menina-velha
Que vai, de cova em cova, beijando e acarinhando
Cada um dos ossos dos mortos, ali enterrados

Essa história faz lembrar: um dia a Vida se esvai
E o que se leva da Vida
É o resultado dessa mania bonita
De se querer por demais.