Nota: Car@s leitor@s, inicio 2014 acrescentando a este blog - que nasceu trazendo relatos e elucubrações pessoais, logo em seguida acrescido da série Umbigos do Cinema (meu olhar sobre alguns filmes que assisti) - a série Contos do Umbigo. Espero que gostem. Vamos ao conto.
Logo na saída do aeroporto, olhou ao redor, um tanto decepcionada. As coisas continuavam exatamente iguais. O provincianismo, o abandono das ruas, nenhuma árvore. Definitivamente uma cidade feia. E a beleza era algo que cultivara desde cedo. A boniteza da natureza, das cores, das pessoas, dos objetos, dos cheiros. O conforto que camas, poltronas e cobertas podiam lhe causar... Quando relaxava, via a vida mais bela. Tensão e feiura. No entanto, toda a sua construção acerca da beleza não fazia nenhum sentido ali.
Logo na saída do aeroporto, olhou ao redor, um tanto decepcionada. As coisas continuavam exatamente iguais. O provincianismo, o abandono das ruas, nenhuma árvore. Definitivamente uma cidade feia. E a beleza era algo que cultivara desde cedo. A boniteza da natureza, das cores, das pessoas, dos objetos, dos cheiros. O conforto que camas, poltronas e cobertas podiam lhe causar... Quando relaxava, via a vida mais bela. Tensão e feiura. No entanto, toda a sua construção acerca da beleza não fazia nenhum sentido ali.
Pegou um taxi até a fazenda do pai. Poderia ser a última
virada de ano que passaria com ele. Sentiu uma brisa triste que logo se
dissipou. Aprendera que a morte era inevitável e não necessariamente dolorosa. "Só
morre quem viveu", pensou. E seu pai vivera, com intensidade. Disso tinha
certeza.
Ao abrir a porteira de madeira, procurou pela marca, feita à
canivete por ela mesma: "Teresa ama Rafael". Registro discreto, posicionado
na penúltima tira de madeira entre o chão e a última das seis tábuas, feito
ali, há quase 20 anos. E talvez nunca percebido por mais ninguém. Segredo seu. Sentiu
a terra fofa, e sem titubear, tirou as sandálias. Pés descalços na terra, mato,
natureza, liberdade. Andar sozinha, ouvindo o farfalhar das folhas ao vento e o
canto dos pássaros era bálsamo para corpo e alma, desvitalizados pela cidade
grande. Fechou os olhos e guardou aquele momento de paz.
Seguiu pela estrada como já fizera inúmeras vezes, amazona
livre, corajosa, parte integrante dali. Talvez
o único lugar no mundo onde se sinta realmente pertencente. Noutros lugares, adquiriu
o hábito de pedir permissão ao entrar. Sabe que os lugares tem vida e pede
licença, sem saber muito bem a quem. Ali, esse ritual era desnecessário. Eram
praticamente um só, ela e o espaço ao redor. Podia correr, gritar, rir as
gargalhadas, andar nua, cantar, rituais solitários tantas vezes vividos ali.
Outro segredo.
Caminhando em meio aos matizes de verde, riu ao reparar no
amarelo que reluzia em bolinhas feito as de Natal. Cascudinhos! Pés repletos dessa
exótica frutinha que ela jamais vira além daquelas cercas. Uma espécie de
lichia rústica, menos suculenta, menos doce, de casca grossa e dura que esconde
a semente revestida de uma massa amarelada. É preciso rachar a casca com os
dentes, de leve. Uma dentada mais forte e o óleo amargo do casco impregna a
língua e estraga o sabor do fruto. Rachado o casco, chupa-se o invólucro cremoso
da semente, como se faz com a lichia. Hum, hum, hum, era o som que se ouvia ao
longo do percurso de Teresa, enquanto cascas e sementes eram atiradas de volta
ao mato.
Ícaro, o cachorro do pai, companheiro de muitos anos, foi
recebê-la na porta da casa, com toda a alegria possível para um cão. Fizeram
festa, os dois, matando saudades indizíveis. "Quem está ai?"
perguntou o pai, jocosamente, enquanto descia os degraus da escada em frente à
porta. Abraçaram-se em silêncio, longamente, enquanto Ícaro se enroscava nas
pernas dos dois, fazendo-os quase tombarem. Riram. E se sentaram na mesa da
cozinha. E fizeram café. E colocaram as novidades em dia. E encheram os olhos
de lágrimas, que não foram vertidas. E planejaram o menu para logo mais.
"Eduardo, seu primo, virá cear conosco". Edu, seu
companheiro de tantas descobertas e que ela não via há tantos anos! Foram próximos,
tanto quanto primos podem ser. Afastaram-se, tanto quanto primos podem se
afastar. Amaram-se, o quanto possível. E sempre que se encontraram, o
compartilhar fora profundo. E filosófico. E amoroso. Temas como Morte,
Escolhas, Entrega, Autenticidade deram o tom de saudosas prosas. Entre eles a
distância dos anos não existia. Mas isso fora há quase quinze anos atrás, temeu
Teresa.
A casa estava tomada pelo aroma do pernil, prato preferido
do pai, além de outras iguarias, nostalgicamente impregnadas da ausência da mãe.
Três garrafas do vinho, produzido ali mesmo, adornavam a mesa farta. Os latidos
de Ícaro se fizeram ouvir. "Chegaram", disse o pai. E uma vergonha
súbita se abateu sobre ela. Quis esconder-se. E foi ao banheiro, ajeitar cabelo
e passar batom, enquanto ouvia os convivas na sala. Saiu reluzente. Cumprimentou
a todos com entusiasmo verdadeiro, enquanto o pai, conduzia cada um à mesa.
"Vamos encher o bucho, afinal entrar o ano com estômago vazio é mal presságio".
E seguiu-se uma algazarra animada e caótica, típica de
festas familiares, repleta de lembranças, histórias e desavenças, claro.
Pequenas faíscas reluziam aqui e acolá. Parentes, exumando antigos conflitos. Parentes
fingindo que nada se passava. Parentes contando anedotas para dissipar a
tensão. O clima ficava mais e mais denso à medida que o teor alcoólico dos
convivas aumentava. Teresa achava graça daquilo. Em meio a tantas colocações
equivocadas, limitadas e repletas de preconceitos, se manteve calada. Sorriu
sozinha por notar o quanto havia mudado. Quantas brigas já havia travado ali
mesmo, naquela mesma? Quantas vezes dissera verdades inconvenientes e desnecessárias?
Quantas vezes sairá dali, constrangida, pela humilhação que causara ao lançar-lhes
na cara suas verdades?
Havia aprendido algo nesses anos. Cultura e natura eram
irmãs gêmeas, inseparáveis. E seu olhar sobre o humano, em si e no outro, amenizara.
Podia conviver com o diferente, ainda sem o desprendimento pretendido, já que
um leve julgamento ainda se fazia presente. Julgar o comportamento alheio,
hoje, lhe parecia das coisas mais inúteis. Afinal, agimos simplesmente dentro
do que é possível. E o humanamente possível para cada um é variável. Simples
assim. Porém, se flagrava julgando. Sabia o quanto era difícil desfazer
hábitos. E se policiava, sem, no entanto, tornar-se algoz de si mesma. Aprendera
a ser sua melhor amiga, a maior conquista dos últimos anos.
Aquela gente vivera uma vida completamente diferente da sua.
Submersos numa cultura machista, reacionária e regida por um Deus condenador e punitivo,
do qual ela fugira há tempos. Via ali muita feiura. E essa afirmação talvez
fosse um julgamento... Ao mesmo tempo, via a beleza surgindo em inusitados
acontecimentos. Como quando a tia Clarinha, servindo-se da salada de milho,
lembrou de sua mãe com tristeza, e, tio Claiton a abraçou carinhosamente,
pousando seu rosto sobre seu ombro, sem dizer palavra. Era uma gente afetuosa, cuidavam
uns dos outros. E havia muita, muita beleza nisso.
Faltava uns cinquenta minutos para a meia-noite quando a
mesa foi se desfazendo. Um a um, os parentes se levantaram entre abraços
afetuosos e desejos de feliz ano novo. Na sala central seria servido o café,
moído na hora. Os mais velhos, dispensaram a iguaria e se recolheram. "Na
roça, madrugamos", disse o pai. Na varanda, restaram Teresa, Edu e o Tio
Claiton. "Mais bêbado do que peru em véspera de Natal" comentou Edu.
E riram juntos da condição típica do tio, exumando uma intimidade talvez não
tão perdida.
Edu parecia ansioso. Teresa entrou na casa logo voltando com
uma garrafa de vinho, duas taças e um sorriso amistoso. Constrangido, Edu
comunicou que já não bebia há sete anos, desde que ingressara numa certa
religião. Ela se desculpou, abriu o vinho, serviu-se e brindou sozinha, batendo
a taça na garrafa: "Feliz ano novo!" Edu sorriu e se pôs a narrar sua
vida, desde a última vez em que haviam se encontrado. Teresa ouvia atenta ao
rosário de infortúnios no qual a vida do primo se transformara. Sofria. Foi
sendo tomada de certa compaixão mas ponderou que tal sentimento a distanciava
dele. "A vida é um percurso feito de escolhas cujo fim ninguém conhece",
pensou. E esse pensamento não apenas dissipou a compaixão como instaurou certa
fé na felicidade futura do primo.
Por vezes, quis interrompê-lo. Acrescentaria uma pergunta
provocativa, certamente, mas desistiu. E teve um regozijo interior de admiração
por si mesma, até que o primo se pôs a narrar, entusiasmado, preceitos da nova
religião, que lhe pareceram absurdos. Não teve coragem de compartilhar sua
constatação de que a vida do primo havia ficado pior desde que ingressara no
tal culto. Seria mais um julgamento? E quem sabe ele não estivesse pior ainda sem
a religião? E não eram também suas ideias e conhecimentos, uma espécie de
religião? Religião cujos preceitos conduziam sua vida, muitas vezes, de modo
absurdo também? Até que ponto somos realmente livres?
Graças aos deuses, o teor alcóolico elevado lhe deu coragem
para mudar o rumo daquela prosa interna. Porque, àquela altura, já não ouvia
mais o primo: Elucubrava sozinha. Pediu licença, entrou novamente em casa logo
voltando com seu laptop, que pousou, no centro do gramado em frente a varanda.
Chamou o primo de braços abertos. E sem dizer palavra, colocou uma música, uma das
canções compartilhadas na carroceria da caminhonete do pai, nas tantas férias
que passaram juntos ali. "Tenho uma seleção de músicas daquela
época", disse sorrindo. E segurou as mãos do primo. E dançaram. E riram. E
pularam. E correram. E cantaram. E ouviram os fogos de artificio anunciando o
novo ano. E se abraçaram, sem dizer palavra, enquanto o tio Claiton, recém
acordado de seu cochilo, berrava: "Feliz ano novo, feliz ano novo!"