1.
A Vila dos Mistérios – um olhar sobre a prostituta sagrada”
Em 2007, estudando a remota prática da prostituição
sagrada, a partir do livro “A Prostituta Sagrada”, da analista junguiana Nancy
Qualls-Corbett, dentro do projeto “A Prostituta Sagrada”, reuniu-se, num processo que, num processo colaborativo de criação, profissionais de várias áreas. Houverae grupos
de estudos, oficina para mulheres e o ciclo de debates “Corpo, Sexualidade e o
Sagrado” com o intuito principal de coletar material para a criação de espetáculo-solo teatral
sobre o tema. O projeto teve apoio do FAC - Fundo de
Arte e Cultura do DF. À
época, para compreender melhor todo o processo de desenvolvimento da mulher, fui
levada à investigar minhas próprias fases de meninisse e adolescência, mergulhei
em minha história pessoal e corporal, de onde nasceu o monólogo “A Vila dos
Mistérios – um olhar sobre a prostituta sagrada”.
“A Vila dos Mistérios” era um local ao norte de Pompéia,
na Roma Antiga onde eram representados os Mistérios Dionisíacos, e onde, havia
a prática da prostituição sagrada. Nele, a sacerdotisa do
templo da Deusa se entrega com devoção ao amor e ao Estranho - homem comum que
penetra o templo em busca de receber as dádivas da Deusa em sua vida. Seus
rosto e personalidade não importam. No templo, são homem e mulher, revivendo
nesse encontro o hieros gamos, o
casamento sagrado entre o masculino e o feminino.
O Estranho, metáfora do
masculino que nos habita e o encontro com ele, bem como com a sua amante, a
prostituta sagrada, talvez nos ajude a reunir masculino e feminino, o carnal e
o espiritual, entre outras polaridades que insistimos em rivalizar. O termo
“prostituta sagrada” representa um paradoxo para a nossa mente ocidental que
dissocia o sexual do divino, fazendo escapar seu significado mais profundo,
relacionado à natureza do feminino. Segundo a autora, “(...) natureza feminina
– do latim natura, significa nascimento ou universo. ‘Natureza’ implica naquilo
que é inato, real, não artificial”.
“Dentro
da evolução da consciência humana, não estamos no mesmo ponto em que estavam as
prostitutas sagradas de outrora. Séculos de divisão entre espírito e matéria
nos deixaram distantes tanto de compreender quanto de experimentar a matéria
como algo sagrado. Diariamente a terra é violada. Diariamente a sabedoria do
corpo humano é devastada pela mente. Enquanto permanecemos inconscientes da
divindade inerente à matéria, a sexualidade è manipulada para preencher desejos
do ego; a prostituta sagrada não está presente, nem a deusa é invocada...” pág
10
Após a estréia do espetáculo,
em dezembro de 2007, havíamos remexido em tantas imagens e emoções, que senti a
profunda necessidade de “deixar aqueles conteúdos dormirem” para retomá-los num
outro momento. Em 2010, e após ter conduzido oficinas com mulheres jovens, a
imagem da prostituta sagrada foi novamente despertada.
2. A
Adolescência da mulher e auto-imagem
Em 2009, a ONG Instituto
Arcana, onde atuo, passou a incluir como público beneficiário do Programa Roda
de Mulheres, além de mulheres acima de 21 anos, também meninas adolescentes do
ensino médio de escolas públicas do DF. E, mesmo inicialmente inconsciente, fui
novamente penetrando "os mistérios da vila", e percebendo como o arquétipo da Prostituta Sagrada pode auxiliar
no desabrochar feminino da mulher jovem, permeado de obstáculos especialmente
relacionados à auto-imagem e a aceitação corporal.
Antes de iniciar a oficina Roda de Mulheres Jovens, realizou-se
grupo de estudos no intuito de adequar os conteúdos para esta faixa etária, e
também para familiarizar as focalizadoras do universo jovem das periferias do
DF. Averiguou-se alto de índice de violência, de gravidez, de não-uso de
preservativos, além de falta de limites, promiscuidade, desconhecimento sobre
sexualidade até a falta de perspectivas e estímulo para progredir.
Entretanto, nos três primeiros
grupos que conduzimos, o tema que mais me chamou a atenção foi a imagem
corporal distorcida que as adolescentes tinham de si mesmas. É claro que uma parte
desse problema é natural nessa fase da vida onde as mudanças corporais e
psicológicas são intensas havendo inclusive a vivência do luto da infância, bem
como do corpo outrora infantil e agora estranho.
No entanto, observamos que
hoje, essa crise têm sido deflagrada bem mais cedo (ás vezes aos 9 anos) e com
uma intensidade maior e mais perigosa do que foi a nossa própria adolescência,
há 20 ou 30 anos atrás. O bombardeio estético da mídia parece ser o maior
responsável por esse fenômeno, somado, talvez, a ausência dos pais, levando ao
agravamento de problemas com auto-imagem, que acabam sendo detectados
tardiamente.
Num dos encontros da oficina,
trabalha-se a auto-imagem por meio da modelagem em argila. As jovens modelam
seus corpos como o sentem, de olhos fechados. Todas as quinze participantes da
oficina que ministrei demonstraram problemas com auto-imagem e distúrbios de
alimentação. O que chama mais a atenção é que nenhuma das participantes poderia
ser considerada gorda ou obesa, estando todas dentro de um padrão estético
considerado “adequado”.
Abaixo alguns depoimentos e
relatos:
- “Fechei os olhos e tentei
fazer uma forma humana, depois desfiz, e fiz novamente um corpo e desfiz.
Tive que abrir os olhos. O olho não deixou e quis corrigir. (...) Até os 9, 10 anos eu era muito gordinha,
comia sem parar, até vomitar. Quando entrei na adolescência comecei a
parar de comer para emagrecer. Aí emagreci e fiquei anêmica. Nessa época,
eu ficava muito sozinha em casa e ninguém percebia, eu passava mal e
ninguém sabia. Foi uma professora que me ajudou, falando sobre anorexia e
bulimia e me mostrando imagens assustadoras”. Vera
(17 anos, nome fictício).
- “Me sinto uma bola” Babi (15 anos, nome
fictício). Babi fez uma bola, com uns furos feitos com dedo representando
os olhos, nariz e boca, na primeira vez fez a boca sorrindo, depois
desmanchou e fez uma boca neutra. Depois relatou que era gorda e perdeu 15
kg no ultimo ano, com muita força de vontade, porque na escola todos falavam
mal, inventavam apelidos e isso começou a afetá-la. Resolveu emagrecer. A
família é toda obesa e foi uma conquista perder peso.
- Joana
(15 anos, nome fictício) também
fez uma bola. Disse que pensou no próprio corpo e que se sente completamente
gorda. De todo o grupo, Joana é aquela que mais poderia ser aproximada á
imagem aceita hoje, sendo muito bonita, magra, cabelos lisos. No entanto
ela não se reconhece assim. “Eu
tenho um tio que exige beleza. Quando a mulher dele engordou, ele se
separou dela, e depois voltou com ela quando ela emagreceu. (...) Eu só
como só de vez em quando. Ano passado eu passei muito mal mas ninguém lá
em casa percebeu. Quando eu sinto fome bebo água. E acho que tem que ser
assim porque eu não gosto de malhar, senão vou engordar”.
- Ana
(17 anos, nome fictício) permaneceu o tempo todo de olhos fechados e pareceu
ter entrado profundamente no processo. Aparentemente imersa, fez
rapidamente uma forma humana com movimento. Tentou fazê-la em pé, mas a
forma não se sustentava. Então a sentou. Relatou que fez a forma como se
vê que há uns 2 anos atrás comia muito, de tudo. A mãe e os tios a controlavam
muito e começou a vomitar. Ficou deprimida, não comia direito. Passou mal
algumas vezes. Ficou muito magra e parou com isso sozinha.
O trabalho com argila funcionou bem e as levou para a
discussão em relação a auto-imagem. As jovens deste grupo tinham conhecimento
sobre distúrbios alimentares, demonstrando que o problema está relacionado a auto-estima,
amor próprio e valorização pessoal, e, em certa medida, alienação corporal.
Outra questão não menos importante é a nutrição, educação
e qualidade alimentar da adolescência de hoje. E mais uma vez não só a oferta
de alimentação do mercado pode ser a única responsabilizada, mas também os pais
que deixam seus filhos sozinhos em casa, decidindo por si, o que comer. Neste
grupo, por não praticarem exercícios físicos (e não querem praticar), acreditam
que devem comer pouco ou quase nada e acabam pulando as principais refeições para
não engordar.
Num outro encontro,
trabalhou-se sexualidade por meio da confecção de uma boneca, onde muitas
questões vieram à tona e outros tantos relatos. A descoberta mais reveladora
foi a certeza de que o conceito de sexualidade deve ser trabalhado não apenas
com enfoque no ato sexual em si e na prevenção de doenças sexualmente
transmissíveis e gravidez, mas em toda a sua abrangência. Isso significa
incluir o desenvolvimento de nossa afetividade e o modo como lidamos com ela nas
várias situações que a vida nos oferece.
Sexualidade é um conceito amplo, que engloba atos, situações, práticas e
pessoas que nos geram prazer. Neste sentido, é condição conhecer o próprio
corpo, seus gostos, desgostos, alegrias e desprazeres. E estas é uma tarefa
individual. Muitas das jovens confessaram que delegam ao parceiro essa tarefa,
distanciando-as ainda mais de seus corpos.
Acredito que a sexualidade está
presente em qualquer situação onde o princípio de Eros esteja atuando, no
sentido originalmente elaborado por Jung. Eros descreve a lei interna de
energia psíquica no que se refere ao estabelecimento de relações, ligações e
mediações. A sexualidade envolve, portanto todas as experiências que
vivenciamos no exercício do amor que vivenciamos, seja por nós mesmas ou por
outras pessoas, projetos, ideias... E urge que tratemos de ampliar esse
conceito desde cedo junto às nossas crianças, incentivando assim uma vivência
mais integradora do processo amorosa da espécie humana.
Num dos encontros, passamos um “prazer de casa” que era
tomar um banho gostoso e demorado, num momento onde não serão incomodadas,
passar creme no corpo, fazer carinho e dar-se um tempo para realmente conhecer
as partes de seu próprio corpo. Ana (17 anos, nome fictício), após o
“exercício”, teve um insight: “Percebi que ninguém cuida de mim melhor do que
eu!”. Que maravilhosa, reveladora e essencial descoberta aos 17 anos. Toda
mulher merece e precisa descobrir essa grande verdade.
3. A Sacerdotisa e o Estranho
A imagem arquetípica da
sacerdotisa (prostituta sagrada) me vem à mente como meio de auxiliar a mulher,
sobretudo as adolescentes, a compreender o processo de honrar seu corpo e seu
espírito tendo a sua sexualidade como algo sagrado. Esta imagem nos aproximaria
de uma relação mais adequada com nosso próprio corpo já que:
“A mulher que tem consciência
da deusa cuida de seu corpo com alimentação e exercícios adequados, e aprecia
os rituais como banhar-se, vestir-se e aplicar cosméticos. Não se trata de
propósito superficial de apelo pessoal, relacionado à gratificação do ego, mas
sim de respeito por sua natureza feminina. Sua beleza deriva de ligação vital
com o Si-mesmo. Tal mulher é virginal. Isso não tem nada a ver com estado
físico, mas com atitude interior. Ela não é dependente das reações dos outros
para definir seu próprio ser. A mulher virginal não é apenas o reverso do
homem, seja ele pai, amante ou esposo. Ela mantém-se em pé de igualdade em
relação a seus direitos. Não é governada por idéia abstrata do que ela “deveria”
ser ou “do que as pessoas vão pensar” pág 81
Esta imagem agrega em si os
lados sagrado e profanos da mulher, possibilitando uma ampliação de nosso olhar
ocidental, extremamente limitado e excludente:
“A Prostituta Sagrada trata de um aspecto
da natureza da mulher: a faceta instintiva, erótica e dinâmica da natureza
feminina, especificamente, os aspectos positivos inerentes a imagem arquetípica
da prostituta. Essa imagem possui dois lados: o sagrado e o profano. O lado
escuro conhecido de imediato; ele manifesta as maneiras mesquinhas em que a
sexualidade feminina é impropriamente usada. Os aspectos positivos, são menos
conhecidos pois os elementos sagrados foram separados” pág 22
E ainda, dentro do mito da
prostituição sagrada, a figura arquetípica do Estranho, pode clarear a relação
da mulher com seu próprio aspecto masculino, a qual todas nós temos que ter consciência
para ter relacionamentos saudáveis. Na psicologia da mulher, o estranho é um
aspecto daquilo que Jung chamou de animus,
o lado contrasexual da psique feminina – um homem interno, por assim dizer.
“A
Palavra animus em latim significa
espírito. O animus positivo inspira a mulher, conduzindo-a para fora, para o
mundo dos objetos, da criatividade das idéias. Fornece senso de direção,
discernimento e continuidade ordenada a todos os esforços” pág 98
“O
animus aparece em muitas formas além da do estranho, como a mulher velha e
sábia, como um Adônis juvenil, ou até como um bebê menino, e cada
manifestação possui significado psicológico particular. Em sua forma negativa,
ao animus pode aparecer, por exemplo, como estuprador ou ladrão que leva os
pertences mais estimados da mulher, símbolos de sua natureza feminina”. Pág 99
“O
conhecimento e a diferenciação das várias formas externas do animus envolve uma submissão a algo que
é parente do rito de iniciação onde a mulher é capturada e penetrada pelo
espírito masculino. Não se trata de processo psicológico, pois envolve também o
corpo. Pág 99
Na melhor das hipóteses, o animus funciona como ponte entre o ego
da mulher e suas próprias fontes criativas. Na pior, ele se manifesta através
de opiniões e pressupostos que destroem seus relacionamentos, quando o
denominamos de animus negativo: “Alguma coisa em mim quer matar-me”
pág 164
“Mulheres
sexualmente promíscuas, a quem falta laço emocional ou até que abrigam
ressentimento profundo em relação ao parceiro, encontram-se desvinculadas de
sua natureza feminina essencial. Essa é precisamente a situação que alimenta o animus negativo. O animus é tão negativo na vida interior dessa mulher quanto o é o
modo como ela vê o homem em sua externa. Ele mostra-lhe face cruel, podando
toda tentativa de avanço por parte dela. Quando mais inexoravelmente ela
acredita serem os homens seus inimigos, menos ela é capaz de compreender que o
inimigo está dentro dela mesma” pág 100
“Atitudes
que rebaixam o feminino devem ser confrontadas. Trata-se de um processo de
diferenciar o que verdadeiramente pertence a “mim”, a partir do que alguma
coisa diabólica dentro de mim está tentando fazer-me acreditar sobre mim mesma.
Aí, então, um senso da deusa e de sua devota, a prostituta sagrada, pode
emergir, permitindo e estimulando a mulher a amar” pág 174
Não tenho respostas a respeito
de como trabalhar a sexualidade junto à mulher jovem hoje. O que sinto é que a
imagem da Prostituta Sagrada me guia me levando a compartilhar seus
ensinamentos sem que seu nome ou seu mito seja citado, pois sei que, nem nós
mulheres adultas ocidentais temos ainda condições e abertura para compreender a
profundidade deste mito, que poderia gerar confusão ao ser apresentado para
jovens tão novas. Mas sigo seus rastros e certamente ela me guiará.
Namastê
Anasha